Contra anistia para os torturadores

Parecer da Advocacia Geral da União provoca reações contrárias a tratamento ameno destinado a responsáveis por crimes

Paulo Rebêlo
Diario de Pernambuco

09.novembro.2008

Em Pernambuco, a polêmica reaberta sobre a aplicação da Lei de Anistia também repercute. Fontes ouvidas pelo Diario, não concordam com o parecer da Advocacia Geral da União (AGU), pelo qual agentes do governo, responsáveis por crimes de tortura e perseguição, não devem responder pelos crimes na Justiça de hoje.

O argumento de que a anistia se aplica a todos os envolvidos na ditadura militar é defendido por setores do governo federal e da magistratura, como o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes; o ministro da Defesa, Nelson Jobim; e mais abertamente pelo ex-ministro e coronel da reserva, Jarbas Passarinho, entre outras autoridades que querem irrestrição da lei.

O argumento de que a anistia se aplica a todos os envolvidos na ditadura militar é defendido por setores do governo federal e da magistratura, como o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes; o ministro da Defesa, Nelson Jobim; e mais abertamente pelo ex-ministro e coronel da reserva, Jarbas Passarinho, entre outras autoridades que querem irrestrição da lei.

O parecer da AGU é baseado no próprio texto da Lei de Anistia, onde se lê que a aplicação é “ampla, geral e irrestrita”. De acordo com esta argumentação – por onde a polêmica ganhou maiores proporções – a amplitude da anistia inclui não apenas os perseguidos pelo regime, mas também os perseguidores.

O Ministro da Justiça, Tarso Genro, e o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi, discordam da interpretação do advogado-geral da União, José Antônio Toffoli. Na Associação Pernambucana de Anistiados Políticos (Apap) o clima é de ceticismo. Para o presidente Antônio Campos, trata-se de um debate falso. “Há 23 anos se discute a abertura dos arquivos, os restos mortais até hoje não encontrados. É uma discussão atrasada e que não caminha porque a maior parte do governo é de direita”.

Mais sucinto sobre o assunto, o atual presidente da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Fernando Lyra, diz não questionar o julgamento sobre a Lei da Anistia por considerar um próprio resquício da ditadura. “Há resistências muito fortes na área militar que impedem qualquer tomada de atitude. A discussão já é um avanço em si, mas é preciso nominar quem são as pessoas contra. A AGU não entrou de graça nesta polêmica de agora, foi incentivada ou provocada por alguém. É preciso saber”, defende.

Oadvogado Egídio Ferreira Lima vai mais além. Para ele, o fato é que o governo brasileiro continua sem querer incomodar alguns setores da repressão, sobretudo a Polícia e o Exército. Ex-deputado federal, Ferreira Lima é mais otimista sobre a retomada dos debates. “Hoje as instituições públicas estão mais sólidas, mais transparentes. Acredito que desta vez pode haver uma definição maior do governo”, acredita.

Antônio Campos garante não se tratar de quem tem ou não razão sobre a amplitude da Lei de Anistia. “As violações não são crimes políticos, são crimes comuns, atentam contra a dignidade humana”, explica.

Pagar até 2010 é meta do Estado

Somente em Pernambuco há 526 pessoas na lista oficial de anistiados do governo estadual, obtida junto à Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. Pouco mais de 100 já receberam a indenização prevista por lei. O responsável pela pasta, secretário Roldão Joaquim, explica que o orçamento para 2008 gira em torno de R$ 1,14 milhão e o pagamento é efetuado na própria sede da secretaria, na Cruz Cabugá. “Estamos empenhados em fazer valer o direito assegurado por lei e o governador está cumprindo uma promessa de campanha feita aos anistiados políticos”, antecipa.

Ano passado, o orçamento foi de R$ 2 milhões. A promessa da secretaria é pagar todos os anistiados até 2010, obedecendo a critérios como idade e estado de saúde. Os valores das reparações variam entre R$ 7 mil a R$ 30 mil, pagos em parcela única. O benefício atende a quem, entre 31 de março de 1964 e 15 de agosto de 1979, foi preso, perseguido e torturado por agentes públicos.

Antônio Campos, presidente da Associação dos Anistiados de Pernambuco, pede por um debate maior junto à sociedade sobre a polêmica em vigor. Ele lembra que, embora muitos dos torturadores já tenham morrido, outros continuam vivos e até mesmo em cargos públicos, pagos pelo Estado. “Queremos que a Justiça, pelo menos, diga quem são os responsáveis. É o mínimo”, pede Campos, que ficou preso por cinco meses no Rio de Janeiro em 1964 e, até 1976, era clandestino.

Campos lembra, também, que a peça-chave deste nova discussão sobre a anistia é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado em outubro pelo juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo. Com o processo, Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado na Justiça brasileira em ação declaratória por seqüestro e tortura durante o regime militar.

Na decisão, o juiz Santini argumenta que a anistia refere-se apenas a crimes, não a demandas de natureza civil, como é o caso da ação declaratória movida pela família Teles, que não prevê indenização nem punição, mas o reconhecimento da Justiça de que há uma relação jurídica nascida da prática de tortura.

Lei nacional gera conflito de opiniões

Debate inicialmente restrito aos corredores de Brasília, a aplicabilidade sobre a Lei de Anistia respinga nos estados brasileiros e chama a atenção dos ouvidores internacionais. Para muitos analistas, é apenas mais um episódio em que o Brasil atropela os tratados assinados frente às Nações Unidas (ONU) e à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em Pernambuco, o secretário-executivo de Justiça e Direitos Humanos, Rodrigo Pellegrino, pondera sobre os dois entendimentos legais e clássicos acentuados pela Lei de Anistia. “Temos a interpretação sobre a lei nacional, a qual prevê efetivamente a anistia todos os envolvidos durante o regime da ditadura militar. Mas, ao mesmo tempo, há o confronto de interpretações porque somos signatários de tratados internacionais que devem prevalecer ante os demais”, explica.

Um dos documentos assinados pelo Brasil é o chamado Tratado de Combate à Tortura, no qual se define que o crime de tortura é imprescritível para todos os efeitos. À risca, o tratado anularia a interpretação do texto da Lei de Anistia, uma lei estritamente nacional. “O que deve prevalecer? A ordem internacional, em nome de algo maior, da humanidade; ou a lei que entendeu, dentro de uma conjuntura e um momento histórico específicos, que todos aqueles delitos devem ser perdoados?”, questiona Pellegrino. Para ele, a questão fundamental é saber qual é o verdadeiro rumo do Brasil.

O secretário-executivo acredita que, por mais que seja legítimo o entendimento dos juristas brasileiros sobre uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, há outros princípios universais que devem ser observados. “Tortura precisa ser combatida pela humanidade”, esclarece.

Ao falar sobre a falta de transparência da União, Pellegrino tem opiniões similares a de Antônio Campos, da Associação dos Anistiados de Pernambuco. “A discussão toda é preliminar, talvez seja mais sobre informação do que qualquer coisa”, diz, referindo-se aos arquivos secretos da ditadura. “É preciso ter muita serenidade, trata-se de um tema para ser debatido pela sociedade brasileira porque traduz o que nós queremos para o país. A democracia se amadurece com temas polêmicos”, define.

Um decreto do então presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu o termo “sigilo eterno” para documentos classificados pelos órgãos públicos como “ultra-secretos”. Com a chegada de Lula à presidência, o governo transformou o decreto em medida provisória e, posteriormente, na lei nº 11.111, tornando o acesso ainda mais restrito do que antes.

Ao comentar sobre o parecer da Advocacia Geral da União (AGU), o Ministro da Justiça, Tarso Genro, disse durante a semana trata-se de uma “decisão pessoal”, e não de governo, ao considerar perdoados pela Lei da Anistia os crimes de tortura cometidos na ditadura.