Protestos húngaros trazem ecos da Revolução de 1956

Desencanto de hoje contrasta com anseios libertários da revolta anti-soviética. Oposição ao governo do PC reformado evoca fantasma do comunismo; aniversário será comemorado com 50 delegações estrangeiras.

Paulo Rebêlo
Folha de S. Paulo – 22.out.2006 [ link original ]

BUDAPESTE – Nas últimas semanas, a Hungria saiu do anonimato recente para a primeira página de jornais mundo afora. Protestos, instabilidade econômica, críticas ferozes ao governo e a emergência de uma extrema-direita em um país que, ainda hoje, é considerado o mais socialmente estável do antigo bloco comunista europeu.

Diante da crise, não demorou para que grupos políticos desenterrassem o fantasma do comunismo (que caiu em 1989) por meio de memórias da Revolução Húngara de 1956, cujo aniversário de 50 anos é celebrado amanhã. Para uma série de historiadores, a revolução foi o gatilho para a derrocada do império soviético. Ou, nas palavras do montenegrino e comunista dissidente Milovan Djilas, morto em 1995, “o início do fim do comunismo”.

No final de outubro de 1956, milhares de estudantes e trabalhadores se rebelaram contra o domínio soviético e a falta de liberdades civis na Hungria. Os protestos duraram até o início de novembro, com a estátua de Josef Stálin derrubada em Budapeste. O movimento foi reprimido pelos russos com tanques e tiros de fuzis.

Cinco décadas depois, com o primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany admitindo que mentiu para a população húngara e para a União Européia a fim de ganhar as eleições gerais de abril passado, a Hungria vive uma nova onda de manifestações, pela renúncia do premiê. Neonazistas e hooligans (torcedores violentos) depredaram praças e prédios públicos; lideranças políticas até então enfraquecidas clamaram por uma nova revolução.

Dois momentos
Até onde a revolta de 1956 e os protestos atuais estão relacionados? É o que se perguntam os húngaros, com a sociedade sem saber o que esperar desta semana de celebrações.
Mais de 50 delegações internacionais chegaram a Budapeste para os eventos, incluindo representantes da Otan (a aliança militar ocidental, à qual a Hungria aderiu após o fim do comunismo) e da ONU. Pessoas que participaram da revolução vão compartilhar experiências nos teatros e em palcos montados pelo governo. Haverá exibições de fotografias e documentários sobre a época.

A suposta relação entre os dois momentos tem levado acadêmicos e pesquisadores a repensar o papel do país na história e, sobretudo, a refletir sobre o significado da liberdade. São questionamentos que tiram o sono de István Rév, 54, diretor do Open Society Archive (arquivo sociedade aberta), financiado pelo magnata húngaro George Soros para recuperar e armazenar arquivos históricos.

“Com o fim do comunismo em 1989, ficamos tão empolgados com a idéia de finalmente termos liberdade de expressão e opinião que, talvez, a tenhamos levado ao extremo, a ponto de o país virar quase uma anarquia”, opina. “Antes tínhamos medo de nos expressar, hoje as pessoas têm medo de questionar as expressões.” Com a repressão aos protestos de 1956, pelo menos 200 mil húngaros fugiram. Boa parte só quis voltar, mesmo para uma visita, a partir de 1989.

Hoje com 66 anos, Gabor Boritt emigrou para os EUA e tornou-se um dos maiores especialistas na Guerra Civil Americana. Para ele, a comparação entre 1956 e o cenário atual “não existe e não tem o menor sentido, mas infelizmente os jovens sabem muito pouco da história do próprio país”. Boritt frisa que, na época do comunismo, o povo estava lutando por liberdade de expressão, pelo direito de ir e vir. “Hoje nós temos liberdade, mas sempre haverá grupos políticos e extremistas que tentam tirar proveito da falta de conhecimento.”
A arquivista-chefe do Open Society Archive, Gabriella Ivacs, lembra que nem todos os exilados tiveram a mesma sorte de Boritt. Para ela, nem os próprios húngaros assimilaram o que aconteceu de fato e a importância da revolução na história. “Ainda há cicatrizes abertas em várias pessoas envolvidas e é uma pena que grupos políticos estejam se aproveitando da situação para tentar ganhar votos.”

Instabilidade
Do “socialismo real” do passado para um futuro de extrema-direita. Eis aí o temor de boa parte da sociedade húngara, principalmente em Budapeste. Nas eleições municipais deste mês, o partido direitista Fidesz venceu em quase todo o país, com exceção da capital e de poucas cidades médias.

O receio é amenizado pelo escritor britânico Bob Dent, que há 20 anos mora na Hungria e é autor de “Budapest 1956: Locations of Drama” (Budapeste 1956: cenários do drama), lançado neste ano. “Na eleição de agora, apenas metade dos eleitores saiu de casa para votar, a maioria estava deprimida e descrente por causa da instabilidade política. Desta metade, apenas metade votou no Fidesz, o que significa algo em torno de 25% a 30% do público”, pondera Dent.

O governo atual, representado pelo premiê do Partido Socialista (MSZP), tenta tirar proveito da ocasião para melhorar sua imagem e a credibilidade diante da comunidade internacional. Mas o partido é a versão “reformada” do antigo Partido Socialista dos Trabalhadores Húngaros (o PC), o que faz com que tente manter uma distância segura da época.

A oposição é personificada principalmente por Viktor Órban, líder do Fidesz, partido dos Jovens Democratas que nasceu com em 1989. Anticomunista, defensor de “valores morais”, Órban, 43, foi premiê entre 1998 e 2002 e hoje é o opositor mais feroz do governo. Partiram dele as principais analogias entre os protestos recentes e 1956. Nem ele nem o premiê Gyurcsany, 45, eram nascidos na época da revolta.

Hoje professor de Sociologia na Middlesex County College, em Nova Jersey (EUA), o húngaro Karóly Nagy desempenhou um papel crucial na revolução, como presidente eleito do Conselho Nacional Revolucionário de Erdosmecske. “Os jovens de hoje precisam entender melhor a revolução e saber o que se pode aprender com aqueles doze dias, com o legado que deixamos. O que qualifica uma nação não é uma ideologia, mas a presença ou a ausência de liberdade. Não é um legado relevante apenas para o nosso país, mas para o mundo inteiro”, afirma Nagy, co-presidente da Associação Internacional de Língua e Cultura Húngaras.