Pirataria levada a sério. Ou quase.

Paulo Rebêlo
Revista Backstage – agosto/2006

Poderíamos usar milhentas páginas para explicar o por quê de ser necessário levar a pirataria fonográfica a sério. Ocorre que os sindicatos, representantes e porta-vozes da indústria e das associações já fazem o serviço. Seja em campanhas na mídia, entrevistas na imprensa, palestras públicas ou conversas informais com empresários, os argumentos são polidos e fazem sentido. Razoável parcela foi, inclusive, abordada nesta coluna nos últimos três anos: incentivo ao contrabando, tráfico de drogas, criminalidade, evasão de divisas, dentre tantos outros amplamente divulgados por entidades como a BSA (Business Software Alliance), ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Disco), ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), RIAA (Recording Industry Association of America) e assim por diante.

Como toda moeda tem dois lados, além da densa camada do meio, é democraticamente razoável e compreensível que tenhamos o direito de analisar e publicar amiúde a realidade mais humano-salarial, para usar uma metáfora, digamos assim, rasteira, sobre a questão da pirataria de CDs e de conteúdo digital como um todo. Se é para elegar uma entidade com discurso, ficamos com a EFF (Electronic Frontier Foundation). Se a idéia fosse nulificar por completo os argumentos e o assunto, nem seria preciso uma página escrita. Bastaria seguir o padrão-mensalão-de-argumentação, aquele cujas bases consistem no bom e velho “se todos fazem, então não é crime”. E para tal, melhor exemplo não há do que o DVD pirata do filme ‘2 Filhos de Francisco’ que foi parar na comitiva presidencial e rendeu elogios do Presidente da República. O caso foi amplamente conhecido.

De tal modo, não é nossa intenção nivelar por baixo o debate. Apenas a de abrir outros prismas e contextos, deixando de lado a universalidade de que apenas a indústria está sempre correta aos ditar as regras de consumo: nos dizendo o que é bom de se ouvir e qual o preço justo de se pagar.

TÃO SÉRIO QUANTO – O exemplo do DVD pirata presidencial é apenas mais um, dentre tantos outros, cujo resultado é refletido nas antiqüíssimas máximas de Confúcio, há quase 3 mil anos atrás, sobre política e gestão social. Uma das máximas confucianas que sobrevivem até hoje é aquela que prega: se pretendes organizar um país, primeiro organiza tua cidade. Se pretendes organizar tua cidade, primeiro organiza teu bairro. Se pretendes organizar teu bairro, primeiro arrume a casa. É o mesmo alicerce adotado séculos depois por Sun Tzu, hoje o queridinho do mundo corporativo ocidental após inúmeras traduções e adaptações: como podes querer comandar um exército se não consegues comandar tua própria família?

E de província em província, para Confúcio tornou-se fácil reconhecer os bons governantes. Bastava aceitar uma xícara de chá. Destarte, é meio ridículo levarmos a sério o discurso das gravadoras e associações sobre pirataria, contrabando e tráficos de drogas por conta dos CDs piratas do camelô quando, do outro lado da rua de um Ministério Público, vemos uma carreata de carrinhos e barracas com os últimos lançamentos.

Para as gravadoras, é reconhecidamente uma luta inglória esta contra o sentimento de inatividade e impunidade. No entanto, a inglória é mútua, referendando-se os devidos valores entre indústria e cidadãos comuns, pobres mortais assalariados que encontram um CD nas lojas por R$ 25 e lembram que, ao atravessar rua, com o mesmo valor poderão comprar cinco discos cujo conteúdo – a música – é idêntico. E aqui entra todo aquele discurso da “capinha” original, do encarte, das letras e uma série de outros fatores cujas discussões, em 90% do tempo, restringem-se a uma classe média (em diante) razoavelmente esclarecida. Ou seja, uma minoria.

IMPUNIDADE – Particularmente, é bem difícil levar a sério o discurso de gravadoras e associações quando demonizam o comprador de um CD pirata no camelô, quando demonizam o download de MP3, mas se calam diante da impunidade dos mega-distribuidores piratas que contam com apoio, muitas vezes, de funcionários de autarquias públicas. Quando se calam diante da morosidade judicial, da falta de aplicações de leis detalhadas e de jurisprudências. É difícil levar a sério quando falamos de internet, de um mundo cujo conteúdo está cada vez mais digitalizado e, ao mesmo tempo, voltamos à idade da pedra lascada quando vemos se concretizar a boa e velha teoria de que a corda só rompe do lado mais fraco.

Antes de reciclar as políticas comercias e de distribuição – além de aprender a usar os meios digitais de forma um pouco mais inteligente – o que as gravadoras precisam, em caráter de urgência, é atualizar o discurso voltado ao consumidor padrão, aquele que não está necessariamente na camada da classe média razoavelmente esclarecida mas que, a priori, não é o típico pagodeiro de plantão e nem está interessado na coletânea do Araketu por R$ 9,90.

Antes de repensar valores e estratégias é preciso, urgentemente, repensar a quem estamos tentando ludibriar, enganar e convencer de que, ano após ano, debate após debate, lei após lei, desemprego após desemprego, ainda seja justo pagar o preço atual por um pedaço de plástico e papel, cujo interior consiste em um CD com tecnologia defasada, espaçosa e, em determinados casos (vide o último álbum da Marisa Monte), uma baita dor de cabeça e descaso com a boa vontade do consumidor “honesto”.

REFLEXOS – O mercado informal de hoje parece não ter fim. Os tentáculos dos camelôs e dos piratas tornou-se infinito. Nada mais é do que um reflexo da realidade comercial de um país, de uma nação. É o mesmo alicerce que rege o setor de software para computador: cobram aqui praticamente o mesmo valor, convertido em reais, do que cobram em países desenvolvidos, com uma realidade socioeconômica radicalmente diferente. É insano.

No final das contas, o que a gente vê são mais postos informais de trabalhos criados do que todas as promessas de aumento de emprego proferidas por todos os políticos juntos em época de campanha. E na atual conjuntura política nacional (leia-se: corrupção, compra de votos, mensalão, CPIs) é ridículo e causa ojeriza um engravatado da indústria fonográfica querer convencer a população de que comprar CD pirata gera “sonegação de impostos”, “desemprego”, “financia o tráfico de drogas”.

Na visão das políticas corporativistas importadas, o Brasil pode até ser um país de iletrados, incultos e ignorantes, categoria a qual eu deveria me incluir, mas deveras não somos bobos. Somos, principalmente, vítimas do que se faz com os impostos que não sonegamos; protagonistas dos empregos que perdemos, dublês de carne e osso do tráfico que congela uma nação de medo com ajuda de desvio de dinheiro da República.

Se comprar um CD pirata for dizer ‘não’ ao discurso vazio sem propostas claras, objetivas e que não menosprezem o cérebro da nação de jeca-tatus que somos, serei o primeiro a pagar R$ 30 para reservar meu lugar na fila dos interessados em comprar do camelô um disco por R$ 5,00.