Lembranças de uma peladinha, no bom sentido

Paulo Rebêlo // junho.2006

As mulheres talvez nunca compreendam a magia que o futebol proporciona ao ego bronco-masculino. Por mais perna-de-pau que seja, todo macho já foi boleiro um dia. Até chegar o momento em que ele acorda e percebe que existe vida (e contas a pagar) fora dos campinhos de barro. A secura infanto-juvenil pela bola desconhece limites. Contraria os preceitos da Física, debocha das leis (pai e mãe) e é uma verdadeira escola superior para qualquer pretendente a MST.


Uma meia cheia de papel amassado, uma latinha de refrigerante, uma tampa de garrafa, uma pedra, uma lata de leite ou até mesmo um pedaço de giz se transformam em uma bola de futebol. Claro, sem esquecer o par de chinelos para fazer a barra. Quem nunca jogou com uma tampinha de Fratelli, que atire a primeira.

A pelada só termina por meio de medidas provisórias como, por exemplo: bola furada, chutão para o outro lado do muro, chegada do dono da casa onde a turma está jogando no terreno abandonado, porrada dos PMs ou tiro de soca-soca na bunda. Pela bola, tudo era fácil. Difícil era se explicar para a delegada de plantão, também conhecida pelo codinome mãe.

APRENDIZADO CONTÍNUO –

Em todo timinho de quintal que se preze, sempre existe o pé-troncho, popularmente conhecido como perna-de-pau ou pé-roncha. É aquele cidadão que nasceu com todos os dons e aptidões possíveis, menos o de boleiro. Eu era o presidente da associação dos pernas-de-pau do colégio, não acertava um passe direito e fazer um gol era mais impossível do que passar por média em matemática. Até o dia em que, voltando da rodoviária pelo metrô, desci na estação Joana Bezerra e vi uma molecada bem organizada jogando ali por trás da estação, num descampado cheio de pedregulhos e cacos de vidro no chão. Ninguém parecia se importar.

Pensei cá com meus botões futebolísticos: por que eles conseguem e eu não? Somos da mesma altura, mesma idade e compartilhamos do mesmo sonho – aquele de ser jogador de futebol profissional. Se os caras conseguem jogar bola descalços e ainda se livrar dos cacos de vidro sem olhar para o chão, eu também poderia aprender. Cheio de moral, inventei de me oferecer para jogar, entrei no meio da partida e, três minutos depois, rezei para que o médico do Hospital da Restauração não precisasse amputar minhas duas pernas quando vi todo aquele sangue jorrando dos dedos do pé e um pedaço de vidro na ponta da unha.

Depois de voltar para aquele descampado durante meses (sempre trocandos os curativos do pé), apanhar feito um condenado nas divididas de bola (do pescoço para baixo é perna) e ser xingado de branquelo FDP (por extenso) a cada passe errado, descobri que existe vida bem mais interessante além do nosso pequeno círculo de amizades. E descobri também que racismo é que nem chifre: é uma via de mão dupla.

No futebol dos amigos, quem é ruim vira café-com-leite e ninguém chega perto para ensinar, mas sempre vai ter vaga no time, mesmo ignorado e debochado. Acontece que, quem é bom, é invejado pelos outros e fica isolado do mesmo jeito. No futebol de cacos de vidro, onde um passo em falso pode lhe fazer perfurar um vaso sangüíneo e ter princípio de hemorragia, quem é ruim simplesmente não joga e pronto – porque ocupa o lugar de quem quer jogar de verdade. E quem é bom, não é invejado, porque procura ensinar o que aprendeu. No final, ou o cara aprende a jogar na marra ou aprende a jogar do mesmo jeito.

Após várias unhas apodrecidas, cortes, curativos, tubaína coletiva e depois de levar um drible da vaca (bola para um lado, jogador pelo outro) de um cidadão que jogava de muletas porque só tinha uma perna*, você pode até não aprender a ser um craque da bola, mas termina aprendendo mais sobre sociologia e sobre luta de classes do que todos os livros reunidos de Comte, Marx, Durkheim e Weber irão lhe ensinar durante o resto da vida.

NEM TUDO MUDA —

Hoje, não existem mais boleiros infanto-juvenis nas capitais, somente na periferia ou no interior. Os pseudo-boleiros de hoje não podem mais sair de casa para jogar bola na rua, pois a lei (mãe) não permite, até com certa razão: é perigoso, tem assalto, seqüestro-relâmpago, bêbado demais, carro desgovernado. Os maloqueiros juvenis agora são hi-tech, preferem o Fifa Soccer no computador ou o Winning Eleven no Playstation.

E hoje, aquele cara que tem emprego, contas para pagar e mulher para administrar, muitas vezes não pode mais jogar bola nem mesmo no domingão: se for para a pelada do clube, fica sem a pelada de casa por uma semana. É um troca injusta. Às vezes, com a bola.

Talvez as coisas não tenham mudado tanto assim e eu esteja equivocado. Continuamos a pular muros, invadir terrenos alheios, a passar por cima das leis sociais e a nos cortar bastante com cacos de vidro e pedregulhos no meio do caminho por causa de uma boa pelada. A única diferença é que agora ela tem boca e pernas.

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* sempre achei fantástico levar um drible de um cara de muletas e só com uma perna, mas durante o ano passado vi (infelizmente, apenas na tela) um outro cara de muletas e com uma única perna usar uma bola de futebol como arma. Aos interessados, é o filme tailandês Kerd ma lui, de 2004, cujo título internacional em inglês é Born to Fight. Pode ser encontrado para vender na internet e, talvez, em locadoras especializadas. O nome do tailandês de muletas é Swat Hoopsom.