Budapeste vira praça de guerra nos 50 anos da revolta

Polícia reprime protesto com bala de borracha; manifestantes jogam explosivos. Oposição conservadora boicota atos oficiais e insiste na renúncia do premiê socialista, que mentiu sobre as contas públicas.

Paulo Rebêlo
Folha de S. Paulo
– 24.out.2006 [ link original ]

A Hungria parou. Deveria ter sido um dia de festa e reflexão nas comemorações da Revolução de 1956, a revolta democrática e anti-soviética que ontem completou 50 anos. Mas, em vez de festa, os húngaros viveram um cenário de violência sem precedentes desde o dia em que a rebelião foi reprimida pelos tanques russos, duas semanas depois de começar.

Jovens enfurecidos, policiais sem controle, bombas caseiras, gás lacrimogênio, balas de borracha atiradas a esmo, idosos desmaiados, crianças correndo desesperadas, adultos sangrando, dezenas de feridos. As ruas no centro de Budapeste viraram praça de guerra, sem distinção entre manifestantes pacíficos ou extremistas.

Logo cedo, um incidente na Praça do Parlamento envolvendo manifestantes que acampam no local desde meados de setembro, quando começaram os protestos contra o governo do primeiro-ministro Ferenc Gyurcsany, foi minimizado pela polícia. Durante o resto da manhã, famílias inteiras saíram de casa segurando a bandeira da Hungria, em protestos pacíficas contra o premiê do Partido Socialista (ex-comunista), que admitiu ter mentido para a população e para a União Européia sobre as contas públicas.

Reeleito em abril, Gyurcsany aumentou impostos e cortou gastos para adaptar o orçamento do país às exigências da UE.

No começo da tarde, grupos extremistas, ligados à oposição ultranacionalista, começaram a radicalizar em lugares-chave de Budapeste, atirando pedras e pedaços de metal contra policiais. Tanques que haviam sido postos nas ruas para lembrar a invasão da cidade pelos soviéticos foram tomados pelos manifestantes e lançados contra os policiais. Helicópteros e esquadrões de elite entraram em cena e a situação desandou.

Enquanto o governo iniciava uma série de eventos formais e fechados ao público em geral, o direitista Fidesz, principal partido da oposição, que boicotou as celebrações oficiais, fechou uma das principais avenidas de Budapeste. Líder do partido, o ex-premiê Viktor Órban discursava para dezenas de milhares de pessoas, em uma clara simulação dos eventos de 1956.

Órban afirmou à multidão que o governo era “ilegítimo” e pediu um referendo sobre o programa de reformas econômicas implementado por Gyurcsany e aprovado pela UE. “A confusão atual é causada por um homem, que levou o país a uma crise política e moral ao enganar o povo”, disse.

Ataque à polícia –

Ali perto, as agressões contra policiais aumentaram e a resposta veio com o batalhão de choque avançando para cima de todos sem distinção. Bombas caseiras e coquetéis molotov começaram a ser usados pelos manifestantes. De noite, muita gente ainda procurava abrigo para fugir do gás lacrimogênio e das balas de borracha da polícia. Grupos de cinco a seis policiais se formavam, fechavam o cerco a algum manifestante e o espancavam, diante de cinegrafistas e fotógrafos.

Algumas das principais estações de metrô foram fechadas; ônibus não podiam circular porque as avenidas estavam bloqueadas. Até a madrugada de hoje, manifestantes permaneciam em partes do centro.

Em discurso nas comemorações oficiais, o premiê Gyurcsany, que lidera uma coalizão dos socialistas com os Democratas Livres (liberais), respondeu à crítica de que não tem legitimidade para liderar os festejos citando um dos heróis da Revolução de 1956, o comunista reformista Imre Nagy, dizendo que ele “foi o modelo para todos que governaram” a Hungria após a queda do comunismo, em 1989.

Nagy, premiê na época da revolta, tentou declarar a neutralidade húngara frente a soviéticos e americanos, mas acabou deposto e foi executado em 1958 -ele foi um dos 341 húngaros condenados à morte na época, ao lado dos cerca de 2.700 mortos e 22 mil presos.

Em 1956 os húngaros não tinham opção a não ser se rebelarem, disse Gyurcsany, enquanto hoje a Hungria é um país democrático. “Apesar do descontentamento muitas vezes justificado, a maioria dos húngaros acredita que a democracia parlamentar é o modelo mais indicado para expressar a vontade popular”, afirmou.

Do outro lado, a oposição mostrava imagens de veteranos de 1956 que deram as costas e não cumprimentaram o premiê durante uma entrega de prêmios e medalhas, ocorrida domingo. Nem Gyurcsany, 45, nem o opositor Órban, 43, eram nascidos em 1956.