Onipresente batalha

Paulo Rebêlo
Revista Backstage
março 2003

Quando a notícia pipocou nas manchetes da imprensa mundial, e por tabela chegou por aqui, parecia uma piada ou conto de primeiro de abril. Não foi bem assim. O fato foi que os proprietários da Sharman Networks, empresa responsável pelo Kazaa, acabara de abrir um processo judicial contra a indústria fonográfica e os estúdios de Hollywood. A afirmação da empresa é que essas indústrias não compreendem a moderna era digital em que vivemos e, por conseguinte, estão a monopolizar todo o setor de entretenimento.

Da era pós-Napster, o Kazaa é um dos programas de maior sucesso para compartilhar arquivos através de uma rede peer-to-peer (P2P), na qual cada usuário é cliente e distribuidor ao mesmo tempo. Logo, não existe um servidor central para fazer o intermédio entre os usuários, a exemplo do que ocorria com o Napster.

O poder do Kazaa é, muitas vezes, subestimado. Uma vez na rede do aplicativo, você pode ter acesso a gigabytes e gigabytes de música, software, filmes, imagens e documentos. E não são apenas filmes do circuito comercial; há muito de cinema alternativo e independente, inclusive, títulos que não chegaram ao Brasil e, talvez, nem venham a chegar. Há músicas estrangeiras que são desconhecidas de muitos de nós, como bandas de Moçambique, Porto Rico, Jamaica, Cuba e assim por diante.

A Sharman Networks garante que moveu a ação judicial contra as indústrias em resposta a um processo, já bem anterior, de infração de direitos autorais impetrado contra ela no início deste ano por diversas gravadoras e estúdios cinematográficos. Estas, por sua vez, acusam a rede do Kazaa de prover livre acesso a músicas e filmes protegidos pelo copyright para milhões de pessoas.

O processo foi aberto pouco tempo após o juiz americano Stephen V. Wilson se recusar a isentar a Sharman de uma lei daquele país sobre violação de direitos autorais. A empresa argumentara que não poderia ser processada nos Estados Unidos, porque não está baseada no país e, então, não poder sucumbir às leis americanas. Na ocasião, o juiz alegou que a Sharman estaria sujeita às leis de direitos autorais por possuir negócios no Estado da Califórnia e, ao mesmo tempo, por ser suspeita de contribuir com a pirataria comercial dentro do país.

Em seu processo, a Sharman acusa as indústrias de monopolização de direitos autorais, práticas ilusórias e abuso. Diz ainda que, com a aparência de impedir a cópia ilegal e manter a atual posição monopolizadora sob a distribuição de conteúdo de entretenimento, as indústrias em questão levam vantagens de forma desonesta. E a Sharman ainda vai além: cobra um julgamento com corpo de jurados, pagamento de indenização e taxas de advogados, e um mandado judicial permanente contra a indústria de entretenimento, de modo que ela não possa forçar nenhum de seus copyrights contra uma pessoa ou entidade. Entre os estúdios envolvidos no processo, constam a Metro-Goldwyn-Mayer Studios (MGM), Columbia Pictures Industries, Disney Enterprises e Paramount Pictures. As gravadoras são BMG, EMI, Sony, Universal e Warner.

É uma briga de foice entre gente grande na qual, por incrível que pareça, a ideologia exerce um fator substancial. O Kazaa fomenta a pirataria? Sim, é óbvio e ululante. Pirataria das grossas, genuína e, sobretudo, extremamente eficaz. Nunca foi tão fácil assistir aos últimos lançamentos e ouvir os mais recentes álbuns. Então quer dizer que a indústria está correta e está defendendo os interesses dos consumidores? Também é evidente que… não. A lógica não funciona de forma tão simples assim.

Na verdade, ao levar em conta fatores comerciais, jurídicos, técnicos, políticos, humanos e até mesmo filosóficos, torna-se difícil acreditar que se chegará a uma conclusão justa sobre essa questão. Não se trata de certo ou errado. Talvez, trate-se de quem está menos errado e quem tem menos direito sobre esses produtos – vide nossas colunas anteriores, sobre o embate entre os artistas e as gravadoras, incluindo aí as políticas de repasse e remuneração. Em tempo: só nos Estados Unidos, são 21 milhões de usuários registrados nos sistemas do Kazaa.

EM TODO LUGAR, EM NENHUM LUGAR — Sem dúvida, hoje o Kazaa é maior fonte de dor de cabeça para os estúdios e gravadoras. Não é à toa que, há bastante tempo, tentam processar a empresa por trás do programa e, destarte, fechá-la. Acontece que não é fácil. Aliás, diversos analistas de tecnologia acreditam que chega a ser próximo do impossível. Não apenas porque a rede do Kazaa é descentralizada, mas também porque não há um computador central gerenciando tudo, no qual – em tese – a Justiça poderia ordenar sua apreensão. Ainda há outros fatores que valem a pena ser vistos.

A situação presencial do Kazaa é assim: os servidores estão na Dinamarca; o software em si, vem da Estônia. O domínio na internet está registrado sob o nome de uma empresa chamada Down Under, localizada juridicamente em uma pequena ilha do Pacífico Sul chamada Vanuatu. E os usuários, cerca de 60 milhões ao todo, estão em todo lugar e em nenhum lugar ao mesmo tempo. É difícil, para não dizer impossível, rastrear algo do gênero. Os tentáculos que a Sharman Networks criou para o Kazaa formam um caráter puro e genuíno do poderio da internet. Ao mesmo tempo, tanta globalização como essa não é suficiente para que as leis de um determinado país possam incidir diretamente sobre outras, passando por cima de barreiras políticas e jurídicas de Estados soberanos.

Advogados e especialistas na área apontam, inclusive, uma outra dificuldade: com tantos tentáculos, em tantos lugares, torna-se complicado saber até mesmo quem processar. Caso o processo seja contra uma empresa A, ela pode dizer que não tem nada a ver e a responsabilidade ser da empresa B. E, depois de meses em apuração, a empresa B pode ver que existe a possibilidade de jogar a culpa na empresa C. E as empresas A, B e C formam uma só que, no caso aqui, mantêm o Kazaa. E durante todo esse lengalenga, o tempo vai passando e a credibilidade da indústria diminuindo.

PROCURA-SE [Vivo ou Morto]: MODELO COMERCIAL VIÁVEL –

Posturas como a de Craig Barret, executivo-chefe da Intel, são alentadoras. Durante uma palestra em Las Vegas, este ano, Barret foi enfático ao dizer que os consumidores têm o direito de compartilhar música, vídeos e outros conteúdos digitais que compraram. Ao mesmo tempo, o executivo acredita que é preciso criar um modelo comercial para permitir que isso ocorra. As primeiras iniciativas nesse sentido começaram a aparecer em 2001. Em 2002, foram incentivadas. Agora, em 2003, espera-se uma maior consolidação de modelos comerciais legalizados, mas ainda há muito para se percorrer.

Algumas gravadoras e empresas de tecnologia anunciaram há pouco que vão oferecer músicas de graça pela internet, a fim de atrair consumidores para os negócios de música online paga. É um esforço sincero para deter a pirataria que, segundo dados da indústria, prejudica a venda de discos. Serviços de música paga para download ou streaming já estão disponíveis na Europa e nos Estados Unidos.

Quem usa Windows, pode até começar a comprar através do Windows Media Player. A nova versão do player (9.0), já chegou turbinada para encorajar a atitude. A Microsoft, inclusive, anunciou o Windows Media Data Session Toolkit, um produto a permitir que as gravadoras coloquem suas músicas em um CD protegido, de múltiplas camadas, no qual seja possível escutar em aparelhos de som e no computador de casa – diferentemente do que ocorre no CD dos Tribalistas, conforme foi visto em nossa coluna anterior.

Esse projeto da Microsoft custou US$ 500 milhões, segundo dados da própria empresa. Ninguém sabe se vai dar certo, mas por enquanto funciona para acalmar os ânimos da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) que está sempre bombardeando a imprensa com releases e entrevistas para dizer que a pirataria vai reduzir de 6% a 12% o mercado de CDs durante este ano e que, só na Europa, mais de 600 mil empregos podem deixar de existir por conta da consolidação do mercado pirata. Conversa para boi dormir? Tirem suas conclusões.