Na linha de fogo

Paulo Rebêlo
Revista Backstage
agosto 2003

A velha máxima de que o cliente sempre tem razão talvez não se aplique à indústria fonográfica, ao menos quando o assunto é internet. Nas colunas anteriores, tivemos uma noção de como as gravadoras e a RIAA (Recording Industry Association of America) já começaram a processar pessoas físicas por causa da troca de músicas, mormente em formato MP3, pela rede.

Em uma linguagem rasteira, é apenas uma mudança de estratégia. Pela lógica de processar os usuários, quem usufrui de programas como Kazaa, Grokster e eMule, passa a receber o mesmo tratamento de quem rouba um supermercado. Para alguns, é um exagero. Para outros, a lógica está correta e tem que ser assim mesmo.

O interessante é que, com a iniciativa judicial, as gravadoras estão a processar os próprios consumidores delas. Não tenho completa certeza, mas acredito que se uma pessoa é processada na Justiça por uma gravadora X, que certamente irá pedir indenização, em sã consciência esta pessoa nunca mais irá comprar um CD distribuído pela gravadora em questão. Evidente que o mundo está cheio de gente com tendências masoquistas, mas não vem ao caso agora.

As ações judiciais das gravadoras vão se concentrar – a priori – nos usuários americanos que mais compartilham arquivos. Contudo, ninguém sabe ainda o que significa “mais arquivos” para as gravadoras, visto que não foi dado um limitador ou algo parecido. A indústria fonográfica estima que, todo mês, 2,6 bilhões de arquivos de músicas em formato digital sejam trocados pela internet. Destes, 90% são disponibilizado por apenas 10% dos usuários conectados – provavelmente, o primeiro foco dos processos.

OUTROS VENTOS ¬– Até hoje, os usuários sempre estiveram em pequenas vantagens em relação à indústria, sobretudo porque é caro gastar energias movendo processos contra pessoas físicas quando pessoas jurídicas causam estragos exponencialmente maiores. Além disso, tecnicamente é bem mais difícil rastrear usuários em redes compartilhadas que não usem um servidor central, como é o caso do eDonkey e seus primos, como eMule e Overnet. Sem contar que, mesmo que a Justiça feche uma determinada rede – ex.: Napster – outras sempre surgirão em escala maior.

As vantagens do usuário parecem diminuir com o passar do tempo. As gravadoras apostam que os bons ventos vão começar a soprar para o lado delas, porque atualmente há jurisprudência favorável nos Estados Unidos. Tudo em detrimento de uma decisão de uma corte americana, que obrigou os provedores de internet a revelar os nomes das pessoas que compartilham arquivos de música on-line.

Foi a primeira vez que um provedor precisou revelar dados, supostamente, confidenciais. A briga entre provedores e gravadoras não é nova, perdura por anos, mas até então os provedores (e conseqüentemente os usuários) levavam a melhor. O quadro adora mudou.

OS BOTOCUDOS – Em uma de nossas primeiras colunas, comentamos sobre o álbum do pessoal que se intitulou de Tribalistas. Comentários não sobre o conteúdo musical ou artístico (?), mas sim do recurso anti-cópia embutido no CD.

Paulo Henrique Andrade, consumidor carioca, conseguiu uma interessante vitória na Justiça contra a gravadora EMI e a fábrica Sony. Ele alegou ter sido lesado na compra do CD “Tribalistas”, visto que a compra ocorreu dentro da lei, mas o disco não funcionou no CD-player do carro, também adquirido dentro da lei. O dispositivo contra pirataria seria a causa.

O 6º Juizado Especial Cível do Rio determinou que as empresas troquem a cópia e paguem indenização de R$ 1.000 ao consumidor. A vitória do carioca foi em primeira instância e, claro, a EMI já recorreu. Caso a gravadora não ganhe a parada, a sentença do Juizado Especial tende a gerar jurisprudência para todos os outros usuários/consumidores que quiserem se colocar contra aos CDs com “cópias controladas”, recurso já incorporado pela EMI em seus lançamentos.

Em entrevista à Folha de São Paulo, o vice-presidente da EMI, Luiz Bannitz, diz que é inevitável acontecerem problemas em situações de implantação de novas tecnologias. Segundo ele, a troca do produto é feita quando o consumidor reclama, mas é lamentável “que certas pessoas usem isso como forma de extorsão”. Cada um que tire sua própria conclusão.

CUSCUZ, LEITE E JABÁ – Não ganho nada em divulgar, então faço questão de recomendar aos leitores uma olhada mais atenta às matérias sobre o mercado fonográfico eventualmente publicadas na Folha de São Paulo. Nos últimos meses, a repórter Laura Mattos tem produzido excelentes reportagens sobre toda a celeuma da indústria em relação à pirataria, jabá e afins. Em outras palavras, tem tocado em uma ferida que poucas publicações se atrevem a tocar.

O conceito de jabá como uma espécie de propina é eticamente repreensível, mas ainda não suficiente para impedir a prática. A extensão do problema, que muita gente insiste em dizer que não tem nada demais, ficou bem clara em uma entrevista concedida por André Midani, um dos grandes nomes da indústria fonográfica brasileira.

Aposentado da indústria há dois anos e atuando em ONGs como a Viva Rio, André Midani integra o grupo de apoio ao projeto de lei, de autoria do deputado Fernando Ferro (PT/PE), que criminaliza a prática do jabá. Midani participou da invenção da bossa nova na Odeon (hoje EMI, vejam só) do final dos anos 50 e consolidou a geração tropicalista na Philips (hoje, Universal) dos anos 60.

Na Universal, anos 70, reuniu elenco de peso com Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Nara Leão, Mutantes, Tim Maia, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Raul Seixas etc. Em 1977, fundou a filial brasileira da Warner, foi um dos homens fortes da invasão roqueira nos anos 80, impulsionando bandas como Titãs, Kid Abelha, Ira! e Ultraje a Rigor. Enfim, nos anos 90, dirigiu as operações latino-americanas da Warner. Vale a pena procurar a entrevista. Quem quiser, pode pedir por email.

Se o jabá tornou-se algo tão intrínseco às rádios, porque não tentam logo fazer um lóbi no governo para regularizar ou criar legislação? A promoção de determinadas músicas mediante pagamento é uma falha ao se levar em consideração a transparência (no caso, a falta de) que deveria ser dada ao ouvinte. As rádios tocam uma canção porque ela faz sucesso ou ela faz sucesso porque as rádios tocam?

Muitos acreditam que tudo isso é uma grande besteira. Talvez até seja. No entanto, é preciso colocar os pés no chão e encarar o fato de que rádios são concessões públicas. Não são a casa de Mãe Joana. Não deveriam ser, ao menos. É possível que o debate não chegue em lugar algum e, talvez, a opção prática mais viável seja uma espécie de auto-regulamentação. Melhor do que proibir e, como quase tudo no Brasil, virar letra morta.