A pena misteriosa

Paulo Rebêlo // abril.2001

Quem mora sozinho, deve presenciar barulhos estranhos e situações inusitadas que sempre ocorrem e você não tem ninguém para lançar aquele olhar inquisitório e indagar sobre o acontecimento. Afinal, sem dúvida, duas cabeças sempre pensam melhor do que uma.

É comum, no meio da madrugada, ouvir uma martelada oriunda do andar superior e ficar imaginando hipóteses das mais extravagantes. Enfim, são fenômenos domésticos os quais, apesar de esdrúxulos, normalmente não geram dores de cabeça para descobrir as causas. Como, por exemplo, acordar no meio da noite com o cheiro de queimado no ar e só então lembrar que esqueceu o forno ligado. Era uma vez o jantar requantado de duas semanas.


Agora, o que eu nunca pensei que fosse acontecer era aparecer uma pena no meio da sala, sem explicação plausível. Vizinhos não criam pássaros ou quaisquer outros animais do gênero. De repente, acordo com uma pena próxima a mim. Jogo fora. No dia seguinte, outra pena, agora na sala.

Não considerei um fenômeno doméstico. Deixei a pena na sala mesmo, pois ainda faltam dois meses para eu fazer a penosa limpeza trimestral no recinto. Durante vários dias, segui com o cotidiano, sem conseguir tirar da cabeça aquela pena misteriosa.

Tudo ficou mais estranho quando, em um sábado qualquer, resolvi terminar de ler um livro inútil no terraço e me deparei com mais duas penas. Não era possível. Será que a casa estava tão suja a ponto de virar cativeiro de uma nova safra de urubu transgênico, o urubu branco? Ou então eu poderia estar prestes a detectar um fenômeno da natureza: o urubu albino.

‘Era demais para mim’ — pensei. Naquele sábado, resolvi movimentar um pouco meus neurônios estacionados e fui refletir sobre o urubu albino com minha loira gostosa predileta: a Brahma, lá no botequim da esquina. Chego em casa somente na manhã do domingo, naquele estado…

Com os olhos entreabertos por causa do sol, ligeiramente tonto, começo a achar que estou tendo uma miragem, uma visão, um delírio: encontro um pombo na minha frente, passeando na sala, como se a casa fosse dele e não minha.

O soltador de penas. Matei a charada. Foi sem querer, mas isso é um detalhe. O que um pombo vem fazer exatamente na minha casa, às seis horas da manhã? Meus neurônios ressacados em slow-motion imaginaram que eu nunca o encontrei pois ele só faz a visita muito cedo pela manhã. Gênio, gênio…

Domingo. Ressaca. Geladeira vazia. Aquele pombo não tinha noção do perigo que estava correndo ao perambular na minha frente, todo gordinho e branquinho. Suculento, eu diria. E ainda por cima eu naquele estado, sem ter muita noção de minhas atitudes movidas pelo estômago. Sorte dele que o fósforo havia acabado… há uma semana.

Sentei no chão. Observei. O pombo estava ali, em plena sala. Não tinha medo, não parecia estar com receio de ir para a panela.

Ficou para lá, para cá… para lá, para cá… para lá, para cá… entrou no quarto, rodou, rodou… entrou na cozinha, rodou, rodou… voltou para a sala, rodou, rodou… foi para o terraço e ficou lá.

‘Estou sonhando’, logo pensei. É demais para minha sã, porém tonta, consciência. Pareceu que ele conhecia o ambiente mais do que eu. Daqui a pouco ele vai se considerar o dono da casa; e eu, a visita. O pombo voou e foi embora, mas não sem antes deixar cair uma outra pena no meu terraço.

O fato é que, nos dias seguintes, fiz questão de acordar bem cedo e ficar estarrecido com a presença rotineira do pombo, que agora parecia já fazer parte da ornamentação do apartamento. Era só o que faltava, um pombo de estimação.

Ao menos, se parecia comigo. Ele sempre deixa cair uma pena; eu sempre deixo vários fios de cabelos (os que ainda me restam) por onde passo. Meu banheiro que o diga, vive entupido com tantas bolas de cabelo na pia.

Mistério decifrado, observei que o pombo cessou com as visitas. Até consegui acordar cedo por vários dias, durante semanas, mas o pombo sumiu. Com um peso na consciência pouco característico a minha pessoa, resolvi tomar uma atitude: um pote de milho no terraço.

Dia seguinte, o pote estava vazio. E, mais tarde, lá estava ele, perambulando pela sala, pelo quarto, sujando tudo e deixando uma pena de vez em quando. O danado ia terminar se acostumando. Pior, poderia trazer a família inteira!

Não obstante o meu receio, resolvi adotar o coitado. Meu primeiro bichinho de estimação, que coisa mais meiga. Ele não trouxe a família. Assim como eu, aquele pombo parece ser mais um eremita perdido, sem rumo. A diferença é que ele não paga aluguel.

O convívio com o urubu albino, como passei a chamá-lo, se mantinha de forma harmoniosa. Ele na dele e eu na minha. Eu o alimento com potes de milho, vez ou outra, e ele me diverte com o jeito engraçado e rechonchudo de andar. No final das contas, quando ele vem me visitar, não deixa de ser uma companhia engraçada.

Nós dois ainda selamos uma aposta: quem vai ficar careca primeiro? Eu ou ele?

Se ele ganhar, eu providencio uma pomba branquinha e fofinha- e ainda coloco o nome dela de Sandy. Se eu ganhar, ele vira pombo-correio e leva um bilhete para aquela vizinha peituda lá do sexto andar.

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