Bacon 99

Paulo Rebêlo
NE10 | 11.setembro.2012
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Quando abri o envelope do laboratório e vi aquele número estampado em negrito, voltei décadas no tempo. Até outro dia, pensava que seria o fim do mundo. Mas, quando finalmente aconteceu, de certo modo foi um alívio para quem passou a vida inteira em luta silenciosa contra a glicose no sangue.

Havia, enfim, chegado ao limite aceitável de 99 mg/dL na glicemia.

Durante metade da vida, minha principal preocupação sempre fora sair vitorioso na guerra contra o histórico familiar de diabetes. Abri mão de todos os doces e guloseimas – forçado, é verdade –, mas venci a desgraçada e sempre me orgulhei de tomar aquele suco de limão ou acerola sem açúcar. Na tora, igual a tirador de coco.

A gente envelhece, adota a coca-zero como companheira infinita e, aos poucos, começa a perder a fé nessa vitória mundana porque os médicos mudam o discurso a cada visita. Um belo dia, me dizem que “apenas” manter distância de açúcar como se ele fosse o anhangá-tinhoso não adianta de nada.

Quer dizer, além de ficar sem meu doce de buriti com farinha, precisava  também fugir das frituras, gorduras e me tiraram até o direito universal de engordar em paz.

Se você for muito ninja e conseguir fazer tudo isso, também não adianta lhufas: tem que fazer exercício regularmente por causa de enzimas, metabolismo e o escambau. Eles deviam aproveitar a consulta e prescrever receita para comprar um revólver e dar um tiro na cabeça também. Resolveria quase do mesmo jeito.

Ao chegar nesse estágio, a única maneira de manter a mente sã é aceitar o excesso de glicose e a carência de insulina como um acontecimento normal, embora maquiavélico, que vai lhe pegar e lhe perseguir até o fim dos tempos. Que, aliás, se depender do laboratório, não vai demorar muito a acontecer.

Com a mente sã e o corpo lascado, segui em frente e segui à risca o velho ditado de aliar-se ao inimigo quando não se pode vencê-lo. Só que o bucho cresceu e os quilos aumentaram, um eufemismo para dizer que ficamos mais maduros e mais carecas para lidar com a situação e, de certo modo, parar de se importar com essa boiolagem toda.

Desde então, os anos passaram rápido e foi somente quando abri o envelope com o 99 redondinho é que entendi: a desgraçada já estava ali me esperando na próxima esquina, pronta para dar o bote e se apoderar desse meu corpinho delícia todo trabalhado na academia do chopp. Pistoleira.

Não foi fácil. Tive que digerir aquele 99 com um prato de cabidela no Mercado da Boa Vista enquanto tentava calcular os próximos passos.

Porque, se antes a gente tinha medo de diabetes e depois passou a aceitar que talvez ela chegasse um dia, agora a dúvida era bem mais pragmática: Quando ela chega? Hoje? Amanhã? Estarei preparado?

Melhor dizendo, como eu vou saber que ela chegou? Como vou saber se migrei para o lado de lá ou se continuo do lado de cá? Se atravessei a fronteira pancreática?

Vou passar mal no meio da rua? Vou desmaiar enquanto atravesso a avenida e sou atropelado por uma Scania desgovernada? Terei tonturas a cada toucinho deglutido? Vou ficar com tremedeiras a cada garfada naquela suave e briosa picanha? Terei convulsões a cada carne de sol suína com pirão de queijo? Terei alucinações com uma placa de neon coberta com mel de engenho me dando as boas vindas? Pior ainda, será que vai faltar insulina para meu pingolim quando uma fofinha estiver coçando meu bucho nas preliminares de um amor sem açúcar e sem afeto?

Será que a diabetes vai ao menos me oferecer uma cerveja e me chamar de meu amor antes de violar meu sangue e meu pâncreas ainda virgem de insulina injetada?

Talvez eu já tenha ultrapassado a fronteira imaginária dos 99. Talvez seja um aviso dos céus infernais para eu me mudar pela décima sexta vez, agora para a Índia, onde a vaca é sagrada e o churrasco é de tofú. Tô mesmo.

Como nada disso aconteceu ainda e até agora o pingolim continua pujante feito o Palhaço Chocolate, talvez ainda tenha alguns dias ou semanas de esperança. Vou comprar minha passagem para o Alasca, visitar meus primos ursos polares enquanto ainda posso sumir do mapa sem precisar de um estoque de agulhas a tiracolo.

Também vou aproveitar enquanto ainda tenho mais algumas semanas no Recife para renovar o estoque de biscoito treloso, que só encontro aqui. Vou acampar no Mercado da Boa Vista, na Carne de Sol do Cunha e em Josébio lá do Acauã Lanches.

Vou leiloar meu pâncreas no Mercado Livre e trocar por uma última fatia de bacon.

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