Às margens da transposição

Paulo Rebêlo (email)
Terra Magazine | 14.novembro.2009

foto: João Carlos Mazella / Ag. JCMazella

Ao estacionar o carro debaixo de uma árvore para se proteger do sempre escaldante sol sertanejo, conseguimos avistar Tonha de longe.

Fui a seu encontro muito satisfeito, não apenas por ter conseguido visitar novamente aquela família a quem eu tanto devia. Mas, também, por enfim cumprir uma promessa feita um ano antes naquele mesmo local, sob aquele mesmo teto, às margens do rio São Francisco na Ilha de Assunção em Cabrobó, Sertão de Pernambuco.

Abri um sorriso para Tonha e apressei-me em dizer: não esqueci. Mostrei as fotografias da família dela e lembrei do desafio de seu pai quando disse que dificilmente voltaríamos para visitá-los.

Minha pueril satisfação escorreu pelas margens do rio no exato momento em que percebi Tonha baixar a cabeça.

Chegamos tarde demais.

Ele se fora. Antes de ver o sonho se concretizar. Não o sonho da Transposição do Rio São Francisco, a qual a população ribeirinha, supostamente a maior beneficiada, ainda não consegue entender direito como vai funcionar. Apenas imaginam em uníssono que bastará abrir a torneira de casa para cair água “porreta”, segundo as palavras do presidente Lula em outubro deste ano durante a caravana em Cabrobó.

O sonho de Seu Valdemar era outro. Era o de ver Opará, como o rio São Francisco fora conhecido pelos indígenas antes da colonização, de volta a sua velha forma: pujante, abundante e vigoroso. Coisa que há muitos anos os ribeirinhos mais velhos guardam apenas na lembrança.

Tonha folheava as fotos do pai, Valdemar Bezerra Luna, agricultor que viveu os últimos 55 dos seus 85 anos de idade às margens do rio. Foi onde criou filhos e netos com invejável bravura, a exemplo de outras 13 milhões de pessoas que formam a população ribeirinha do Velho Chico.

Recordo da vívida imagem de Seu Valdemar segurando um pequeno frasco de hipoclorito de sódio enquanto nos explicava de uma época quando havia peixes para pescar e água potável para beber. Sem o uso de substâncias controladas e de difícil acesso como aquela.

Antes de Seu Valdemar, muitos se foram. Depois dele, muitos ainda se vão. Até que uma certa promessa seja cumprida. Não a de imprimir fotografias e dar de presente. Sim, a promessa secular de democratizar e universalizar a água numa região do Brasil historicamente castigada pelo descaso político, abandono social e amplo desconhecimento da sociedade nascida e criada em seios urbanos.

Um rio de decretos

A bacia hidrográfica do São Francisco, em seus 2.863 km de extensão, percorre 504 municípios divididos em sete unidades federativas.

Nosso contato com Seu Valdemar ocorrera meramente por acaso, em julho de 2007, a partir de uma série de pesquisas e reportagens durante o início formal das obras da transposição em Cabrobó, ponto de partida do Eixo Norte, por onde haverá a ligação entre Pernambuco e Ceará através de um canal com 416 quilômetros previstos.

Junto ao fotógrafo João Carlos Rodrigues, cujas fotos ajudam a ilustrar este texto, nos instalamos de “mala e cuia” junto aos trukás, poucos dias depois da célebre expulsão do Exército pelos índios no canteiro de obras, localizado em terras reivindicadas pela tribo.

A família de Seu Valdemar, por intermédio da filha Tonha e do Cacique Neguinho, nos abrigaram e alimentaram durante aquele período de muitas descobertas interessantes. Descobertas para nós e para eles.

Foram inúmeras famílias com quem conversamos às margens do rio, em milhares de quilômetros rodados nos últimos anos pelo Nordeste. Todas elas nos mostrando como era a vida real e as condições de quem dependia do rio São Francisco para sobreviver. E como essa relação, outrora harmônica, tanto mudou.

Sobre a transposição em si, eles ouviram as mais diferentes histórias, argumentos e opiniões. Muita gente contra. Muita gente a favor. E mais gente ainda sem fazer a menor idéia do que se trata.

Ainda hoje, ao percorrer os grotões do Brasil, me perguntam do que se trata “de verdade” a Transposição do São Francisco. Mas como definir uma verdade cuja existência, desde a época do Império, nunca deixou de ser um sonho para alguns e um pesadelo para outros?

Depois de Dom Pedro II, a noção de transpor as águas do rio foi retomada por Getúlio Vargas em 1943, ganhou destaque durante o governo de Figueiredo após a grande estiagem de 1979 a 1983, chegou ao colo do presidente Itamar Franco em 1994 e ganhou decretos durante a era Fernando Henrique Cardoso no período de 1998 a 2002. Desde 2003 voltou à agenda nacional, agora com Lula.

Em outubro de 2007 (ou seja, após o início formal das obras do Eixo Norte) as atribuições passam para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, na época presidido por ninguém menos que a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Por 42 votos contra 4, o Conselho posicionou-se contra a transposição como ela se apresentava na época e estabeleceu que as águas do São Francisco só poderiam ser utilizadas fora da bacia em casos de escassez comprovada e para consumo humano e dessedentação animal. Motivo? Acentuado grau de degradação do rio. Uma situação que os ribeirinhos tanto falam, há tantos anos, mas poucos parecem escutar.

Nos meses seguintes, novos decretos surgiram a partir de conflitos entre as devidas competências institucionais; as obras foram liberadas, não obstante os processos judiciais ainda hoje em curso e que ninguém em sã consciência pode prever o desfecho.

Outubro de 2009, a transposição é chancelada pelo governo federal como “fato concreto”.

Difícil explicar? Sequer me atrevo. Talvez pela falta de competência discursiva em repassar as letras oficiais que ouvimos tantas vezes em audiências públicas, plenárias e outros encontros, quando emissários do governo explicavam a transposição mais ou menos assim:

“Transpor as águas para abastecer partes do semi-árido nordestino e beneficiar 13 milhões de pessoas, retirando apenas 2% do volume de água do São Francisco por meio de dois canais, gerando milhares de emprego e melhoras estruturais para todo o Nordeste, ao mesmo tempo em que ajuda a revitalizar a bacia hidrográfica do São Francisco.”

Parece um sonho. Seu Valdemar ficaria orgulhoso.

Também ouvimos a explicação acima de um sem número de prefeitos, deputados, vereadores, profissionais liberais, engenheiros e até de poetas. Também ouvimos o oposto de igual número de pessoas em todos os Estados do Nordeste.

E quando tentamos extrair o sumo de todo o maniqueísmo típico de comícios e caravanas pelas profundezas do Nordeste, na minha mente sempre veio apenas a voz de Seu Valdemar nos dizendo:

“Mas o rio é tão grande… acho que não vai faltar se tirarem um pouquinho da água aqui da gente para levar aos nossos irmãos lá de cima, não é?”

Se essa conclusão é fruto de uma imensa ingenuidade ou de uma imensa sabedoria, só o tempo irá dizer. Até lá, muitos continuarão sonhando. E nós continuaremos torcendo que sobrevivam para ver. E para cobrar.

Meandros humanos

Foto: João Carlos Mazella / Ag. JCMazellaEm 2007, quando as obras começaram em Cabrobó, para boa parte do Brasil que desconhece o Brasil a insatisfação dos índios trukás naquela cidade parecia um fato novo.

Ledo engano.

A única novidade, de fato, fora o barulho agora gerado pela mídia nacional – em grande parte por conta da presença de um Exército acuado pela mobilização indígena e da greve de fome do bispo de Barra (BA), Dom Luiz Cappio. E, claro, com a sempre presente contribuição das hipérboles de Brasília sobre uma obra que se coloca como um aguardado messias para o Nordeste.

Por meio de seus líderes, em agosto de 2007 pelo menos três mil índios da etnia truká se rebelaram contra as obras da transposição. Oficialmente, colocaram-se contra o projeto por acreditar que a água do Velho Chico iria acabar e prejudicar a pesca e agricultura da região.

A tribo é uma das principais produtoras de arroz e cebola em Pernambuco, chegando a ser responsável por mais de 80% da produção deste primeiro item. Talvez nem os trukás tenham real noção do poder persuasivo que, teoricamente, possuem.

São dúbios os reais motivos, mas quando os primeiros sinais de uma nova transposição voltaram a surgir durante o início do governo Lula, em 2003, os trukás e boa parte da população ribeirinha já mostravam um amplo consenso negativo às obras.

Naquela época, contudo, o acesso às opiniões dos trukás envolvia uma complexa negociação e muito jogo de cintura. Porque até meados desta década, Cabrobó não era um dos ícones da transposição como o governo classifica hoje. Era um ícone de produção e do tráfico de drogas na região, conhecida nacionalmente pelas autoridades, pela força policial e até parte do folclore urbano em Pernambuco.

Os caciques trukás com quem conversamos e convivemos, durante a mobilização de 2007 contra o Exército, não sabiam ou não lembravam. O tempo havia passado, mas ali de frente a eles estava o mesmo jornalista que foi sutilmente convidado a sair da cidade por duas vezes, em anos anteriores, ao tentar entrar na Ilha de Assunção para conversar com os índios sobre o problema do tráfico que aterrorizava e dizimava famílias inteiras de índios, sobretudo os mais jovens.

Eram tempos difíceis. Mortes por encomenda, traficantes infiltrados, ameaças, queimas de arquivo. Capangas armados faziam a segurança da ilha e, como zelava a Constituição, ninguém podia entrar sem autorização expressa dos índios, geralmente por via da Funai.

O silêncio sempre reinou em Cabrobó. E neste ponto, pouca coisa mudou. A cidade melhorou bastante e continua a progredir visivelmente. O grosso do tráfico não age mais a céu aberto como antes. Contudo, ainda há certos assuntos que não podem ser discutidos. A transposição, neste caráter atual de messias do desenvolvimento nordestino, passa ao largo de tudo isso.

E durante a caravana de outubro de 2009, sequer uma palavra foi dita.

Foto: João Carlos Mazella / Ag. JCMazellaDaquela época pouco amistosa no município, chegamos a 2005 quando a liderança dos trukás estava convicta do seu papel de se opor às obras da transposição. Obras tais que entrariam em seus territórios sem autorização, situação proibida expressamente pela Constitiução. Mas as escrituras das terras (onde reside o início do canal) nunca foram deles. Como de praxe, um conflito legal e histórico das tribos indígenas espalhadas em todo o Brasil: são donos de terra de fato, não de direito.

Por conta de um passado sombrio com o tráfico (porém um paraíso para os traficantes) ninguém nunca soube, factualmente, se os trukás se posicionavam desde muito cedo contra a transposição por livre e espontânea vontade ou por influência de terceiros.

Dois anos depois, em 2007, quando o assunto ganhou as manchetes nacionais já com o tom de guerra e de greve de fome, a mobilização dos trukás caiu como uma luva para Estados como Sergipe e Bahia, por exemplo, os quais sempre se colocaram publicamente contra a transposição, alegando que seriam prejudicados ambiental e economicamente.

As posições de Bahia e Sergipe, por exemplo, não estão apenas em reportagens da época. Estão em livros e documentos oficiais disponíveis para leitura de qualquer um.

Naquele ano de 2007, bem diferente da animosidade quando outrora fomos convidados a nos retirar da cidade, os trukás nos recebem e mostram boa parte de seus territórios – alguns trechos ainda estavam “fechados para visitação”, por assim dizer, assunto que incomodava as lideranças e causava desconforto generalizado. Ainda hoje.

Somos levados de “canoa motorizada” pelo Velho Chico, um caminho alternativo para conferir o início das obras e onde o Exército não poderia ver nossa chegada ao local com as primeiras escavações. Depois da mobilização indígena contra os militares, fechou-se uma porteira na área e civis não podiam entrar. Enquanto observavam qualquer movimento do Exército ao longe, os trukás reafirmavam para nós que ali naquela terra não deixariam o governo construir nada. Era deles.

Agora vamos dar outro pulo e chegamos a outubro de 2009. Quem viu a caravana do presidente Lula agregando tantas dissidências políticas e sem as reivindicações de outrora, fica sem entender nada. E duvida de como não há mais debate sobre problemas sérios como o tráfico de drogas, o alto índice de suicídio nas regiões de baixo IDH do Nordeste e uma máquina corruptora de instituições e autoridades na região. Mais ainda: qual foi a solução encontrada com os trukás?

Não se ouviu uma linha das autoridades. Não se leu uma linha na imprensa.

Entre os perenes e os temporários

Foto: João Carlos Mazella / Ag. JCMazellaA falência das instituições também teve sua fatia de responsabilidade quando outro ícone daquela região se foi.

O discurso ambiental e de demarcação de terras tornara-se o lugar comum nos debates sobre a transposição entre 2005 e 2007, embora a questão seja discutida desde muito antes, independente da idéia de transpor as águas do Velho Chico. A exemplo dos tantos prefeitos naquela época, os quais igualmente patinavam nas informações mais precisas sobre as obras, os índios agricultores replicavam o massivo discurso negativo.

Em 2008, um ano depois da mobilização contra o Exército, retornamos novamente a Cabrobó. Entretanto, agora com outra tarefa: saber mais sobre o assassinato em praça pública do índio truká Mozeni Araújo, 37 anos, uma das principais vozes políticas da cidade e talvez a liderança truká mais articulada e com mais conhecimento de causa para explicar o problema do tráfico de drogas e negociar concessões com o governo sobre as terras indígenas.

Então candidato a vereador, Mozeni foi morto em agosto de 2008 com tiros à queima-roupa em frente a seu comitê de campanha, na ocasião lotado de amigos e correligionários. O crime calou a cidade de Cabrobó e levou embora uma das poucas pessoas que, quando bem questionado, falava abertamente sobre as intenções e a histórica dificuldade de negociações entre índios e governo.

Mozani fora uma das vozes ativas contra o uso de fazendas e terras indígenas para o tráfico de drogas na região, justamente ali onde nasce o Eixo Norte da transposição. Assunto que curiosamente não consta em nenhuma pauta das informações divulgadas sobre as obras.

Mozani foi um dos poucos a abrir o jogo honestamente. Não se tratava apenas de meio ambiente ou de sobrevivência do rio, mas também de negociação e benesses mútuas. Se o governo cedesse a alguns anseios, entre eles uma boa indenização pelo uso daquelas terras (apesar da falta de escrituras) os trukás poderiam sentar à mesa e discutir, quem sabe até mesmo apoiar à transposição se entendessem que ela iria realmente beneficiar a população ribeirinha.

Em termos de negociação com governos, os trukás e tantas outras tribos brasileiras estão calejados de ouvir inúmeras promessas, ceder e esperar por algo que nunca se concretiza. Por outro lado, os trukás também são criticados por tribos diversas (e por vários burocratas em Brasília) porque, num contexto nacional, estão entre os índios que mais tiveram terras reconhecidas como deles, mais ganharam benesses de infraestrutura, se situando num ponto relativamente confortável em termos de organização e reconhecimento.

Para os trukás, a transposição do jeito que os emissários federais apresentavam era como uma segunda enganação. Como bem frisou o Cacique Neguinho – agora já sabendo que o jornalista de frente a ele era o mesmo de anos atrás, quando teve armas apontadas em sua direção por outros trukás – não havia motivos para confiar no discurso de Brasília.

“Já nos enganaram uma vez quando construíram a Barragem de Sobradinho, não vão nos enganar de novo. Tínhamos peixe em abundância que a natureza nos deu. Hoje, quem consegue pescar alguma coisa volta para casa agradecendo a Deus, porque neste rio daqui não há mais nada”, disparou.

Ali revelava-se, de modo sublime, o emaranhado político quando as obras sequer davam os primeiros passos no Lote 1 do Eixo Norte. Hoje, é curioso perceber como qualquer assunto relacionado aos conflitos paralelos à transposição não consta na agenda de divulgação, seja do governo federal ou dos governos locais. Assim como sai de cena, também, o conflito intermitente de conveniência com o tráfico e a latente carência social e política na região.

Acima dos conflitos e opiniões diversas, ainda resta uma dúvida sempre levantada e sempre respondida com pouquíssimos detalhes: depois de tudo pronto e concluído, qual será o papel dos grandes latifundiários em cujas terras, coincidentemente, passam os dois canais da transposição do São Francisco?

Enquanto a água não vem

Foto: João Carlos Mazella / Ag. JCMazellaÉ muito fácil conhecer como funciona a política nos grotões do Brasil. Tirante as poucas exceções de praxe, você só precisa de dez minutos de conversa, com qualquer prefeito, para ter uma noção semi-exata do nível de qualificação e de consciência política deles.

Para quem conhece os dois lados da moeda, não difere muito dos corredores do Congresso Nacional em Brasília.

Não à toa, são os prefeitos desses municípios os maiores beneficiados políticos por todas as obras da transposição. Com a conclusão prevista (até agora) para 2012, cairá sob as mãos do poder executivo local (e dos orçamentos municipais) a tarefa de conduzir a gestão local do caminho do desenvolvimento prometido pela transposição.

É uma responsabilidade enorme e uma tarefa hercúlea a ser enfrentada pelos mandantes destes municípios ribeirinhos. Sozinhos eles não poderão fazer muito. Sem uma mobilização apartidária entre municípios, Estados e União, o sonhado caminho do desenvolvimento nordestino poderá ter que esperar outras tantas décadas a perder de vista.

Se lhe parece uma utopia, bem-vindo ao clube.

Ainda é preciso atentar a detalhes que talvez nem todos os prefeitos conheçam. Entre eles, um relatório de 2008 elaborado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) pelo qual constavam 400 obras inacabadas no Brasil no valor de R$ 3,5 bilhões. Destas, 130 eram executadas pelo governo federal e 270 por Estados e municípios, sempre com transferências federais de recursos. Todo o projeto de transposição do São Francisco, incluindo as obras de revitalização, totalizam algo em torno de R$ 6 bilhões, vale lembrar.

Em outubro de 2009, mesma época do périplo presidencial pelas obras da transposição, sai de Brasília outro relatório. Agora de atualização do Programa de Aceleração do Desenvolvimento (PAC) sob a bandeira do Ministério da Casa Civil, de Dilma Rousseff. Papelada amplamente divulgada e por onde se lê que das 2.392 ações previstas para o período 2007-2010, 39% estão concluídas, 52% em andamento, 7% em situação de atenção e 2% com ritmo preocupante. Dos R$ 646 bilhões previstos até 2010, 53,6% já foram aplicados.

Desta salada de números, interessa o detalhe: das ações citadas pelo relatório do PAC, não estão inclusas as obras de saneamento e habitação, que são justamente duas das principais molas condutoras do prometido desenvolvimento estrutural a partir da transposição do São Francisco.

Se uma ampla mobilização entre prefeitos não ganhar corpo, se ou quando a transposição estiver pronta, voltaremos à estaca zero daquele período 2005-2007 quando Estados nordestinos se posicionaram em clima de discórdia entre irmãos.

Se lhe parece uma utopia…

Vizinhos entre rios

Em Monteiro, no cariri paraibano, encontramos pessoas como o casal de agricultores Ailton e Silvia Tavares. À primeira vista, os Tavares poderiam ser considerados privilegiados por morar a poucos metros de um açude. Mas a água sempre foi tão poluída e barrenta que até os animais rejeitam.

Para a transposição, Monteiro é a cidade-ícone do Eixo Leste, equivalente a Cabrobó no Eixo Norte. Desde 2005, a esperança de uma melhora nas condições de vida para a população rural em Monteiro tem apenas um nome: transposição.

Em 2007 conversamos com Vlamir Bezerra Japyassu, 40 anos vividos no cariri, enquanto ele nos mostrava, animado, o local por onde irá passar o Eixo Leste.

Foi também ali, em Monteiro, onde em outra oportunidade encontramos o folclórico padre Djacy Brasileiro e sua folclórica Cruz de Latas simbolizando a seca no Nordeste e a necessidade da transposição.

Em outra oportunidade, durante uma manhã de discursos, com dedo em riste, rosto vermelho, suando em bicas e aos berros, lá está o Ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, pedindo que a população “não o confundisse com algumas lideranças políticas” da Bahia, seu Estado de origem, que se colocavam contra a transposição “para barganhar com o governo federal”, segundo suas próprias palavras.

Geddel garantiu que, diferentemente do que dizem os oposicionistas ao projeto, o benefício primário da transposição será matar a sede dos nordestinos, não será apenas o agronegócio.

É o que 13 milhões de nordestinos esperam. Há pelo menos um século.

Juntou-se ao coro o governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e o “líder” religioso da região, Dom Aldo Pagotto, uma espécie de antípoda de Dom Luiz Cappio, falando das benesses da transposição para seu rebanho.

Outubro de 2009, caravana de Lula, Dom Cappio não estava presente. Exatamente ali no município de Barra, Lula discursou ao lado de Dilma Rousseff, Geddel e do governador da Bahia, Jaques Wagner. Novos tempos?

Faltou alguém para perguntar a Geddel se ele chamaria Dom Cappio de “inimigo número 1 da democracia”, conforme consta em artigo escrito por ele e publicado na Folha de S. Paulo no dia 12 de dezembro de 2007, em virtude da segunda greve de fome do bispo.

Ninguém perguntou.

Enquanto isso, a 50 km de Juazeiro (Bahia), na Barragem de Sobradinho, o mundo de água do São Francisco assusta a quem chega. O rio parece um mar, não tem fim. E a apenas um quilômetro da hidrelétrica, as terras são secas e rochosas, bem piores do que em Cabrobó.

De um lado da rodovia, pequenos agricultores suam para plantar qualquer coisa e ter o alimento diário. Do outro, grandes fazendas denotam o poderio financeiro para trabalhar com fruticultura irrigada e gerar milhões de reais na exportação de frutas.

Se a transposição do rio São Francisco irá contribuir para diminuir contrastes seculares como esse, resta-nos apenas refletir sobre a máxima de Seu Valdemar e a subsequente conclusão: um ato de grande ingenuidade ou de grande sabedoria.