O homem do telhado

Mal havia saído da adolescência quando conheci um cara chamado Cegonha. Esportista, ele treinava bem próximo de onde eu morava na época.

Às vezes, eu passava naquela casa velha caindo aos pedaços a qual chamavam de academia. Quase sempre, ao entrar, me deparava com um homem sozinho no telhado. Ele mirava o horizonte e por horas a fio fazia exercícios de respiração como se estivesse num universo paralelo, alheio a tudo que acontecia lá embaixo.

Uma visão curiosa, quase psicodélica. Todas as pessoas “normais” embaixo e um único ser humano no telhado. Eu chegava, ia embora, ele continuava no telhado. Talvez uma espécie de templo, não sei ao certo. Nunca tive coragem de subir, apesar da recorrente curiosidade em saber como era a vista ali de cima.

Certo dia, chega-me Cegonha com a cabeça completamente raspada, rosto enfezado, roupas rasgadas e sujas, barba cheia de buracos, chinelos velhos. Um desastre. Mais feio do que o cão chupando manga. Pisco os olhos e lá está ele novamente no telhado.

Aos curiosos, respondeu simplesmente de que dali por diante não queria mais se distrair com mulheres. Queria ficar o mais feio possível, pois assim elas deixariam de procurá-lo. Ou correriam de medo quando ele mostrasse interesse.

Talvez porque as mulheres tomem muito nosso tempo. Oxalá fosse um tempo a ser dedicado integralmente ao trabalho, ao bem da humanidade ou qualquer outra virtude de folhetim. Teoricamente, a gente vive querendo agradá-las, conquistá-las, perdemos a cabeça quando nos apaixonamos e não raro perdemos um pouco de sanidade mental quando elas vão embora.

Eventuais necessidades físicas, o Cegonha ou qualquer outro maluco pode resolver de outras maneiras. Pode ir a um cabaré, alugar um filme pornô ou ter amizades coloridas sem exigir contrapartidas afetivas – embora eu desconfie que ele estava tão concentrado que nem isso lhe interessava naquela época.

Cegonha não queria participar de olimpíada. Não queria entrar em campeonatos, ganhar medalhas, reconhecimento, reportagem em jornal. Ele não gostava nem que as pessoas soubessem seu nome.

Quando tudo dá errado, é curioso como os homens têm a mania aparentemente estranha de se dedicar ao trabalho como se nada mais existisse. Como se fizesse sequer a mínima diferença para a humanidade. Talvez porque o trabalho seja o único refúgio seguro, um telhado onde somos mestres do nós mesmos.

Eu ainda levaria um bom número de anos até entender a aflição daquele homem.

Telhados de vidro –

Às vezes, as pessoas pegam uma escada e abrem mão de tudo. De diversões, dos amigos, da família. E principalmente das mulheres que supostamente nos amam e das mulheres que pretendem nos amar. Além das centenas de mulheres solteiras, afoitas e perdidas em cada rua e escritório.

À primeira vista parece difícil, mas depois de subir o primeiro telhado a gente vê como é fácil.

Lá de cima o mundo não gira, apenas passa. E passa a partir de uma perspectiva diferente, nos tornando malditos e ao mesmo tempo felizardos por conseguir enxergar tudo melhor, em ângulos nos quais as pessoas lá embaixo nem sonham existir.

Com o passar do tempo, você começa a se acostumar demais com o conforto e o silêncio do seu telhado. Outras pessoas vão tentar subir e não vão conseguir.

Umas vão querer subir para lhe puxar, trazê-lo à vida real aqui debaixo. Outras, contudo, podem simplesmente querer entender como é a vida em cima do telhado. Porque, oras, para você se apegar tanto deve haver algo diferente, reacionário, libertador.

Só que às vezes não há nada, é apenas um telhado cujas telhas você perdeu ao longo do caminho.

Quando cedemos a escada para uma pessoa subir, comumente elas enxergam apenas um grande vazio. O mesmo vazio pelo qual, depois de tanto tempo, já não conseguimos mais descrever em palavras ou contabilizar as telhas perdidas.

O homem sozinho no telhado geralmente não faz a menor questão em se proteger do mundo que gira, mas zela pela certeza de não ter chances de machucar ninguém. Se porventura uma pessoa tenta e não consegue subir, a naturalidade irá fazê-la ir embora e procurar telhados mais acessíveis, quiçá telhados vazios para derrubar.

Do telhado você vai enxergar várias mãos para o alto, sem saber exatamente se elas desejam puxá-lo para a calçada, subir no telhado com você, tomar seu lugar ou se simplesmente levantam os braços porque todas as demais pessoas estão fazendo a mesma coisa.

As mãos sempre estarão lá, assim como deve ter aparecido várias mulheres interessadas em Cegonha naquelas condições de anhangá-tinhoso.

Sempre haverá alguém estendendo a mão quando todas as outras se forem. Cansadas pelo tempo ou pisadas pelo seu hábito de não olhar para baixo. Até você conseguir  enxergar aquela mão toda machucada, muitas telhas terão caído pela chuva e pelas pedras jogadas, mas às vezes é tarde demais. Às vezes resta apenas uma mão sem força, sem ninguém ali embaixo para lhe ajudar a descer do telhado. E você volta a procurar suas telhas perdidas pelo mundo, em meio a multidão de gente na calçada gritando, brigando e caindo no chão.

O mundo está cheio de pessoas assim. E no fundo nunca sabemos se estamos no telhado ou se é a mão da gente ali sendo pisada.